Cultura da pedofilização: uma verdade difícil de engolir - Por Mariléia Sell
- Start Comunicação

- 11 de set.
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Atualizado: 15 de set.
De onde eu venho, se diz que agosto é um mês perigoso, tão perigoso que quem sobrevive a ele ganha o benefício de mais um ano de vida. Pois foi nesse mês tão temido que tivemos que sobreviver às verdades expostas pelo youtuber Felca, sobre a adultização de crianças e de adolescentes. Mas sejamos honestos, o assunto não é novidade, todos sabemos que nossa cultura sexualiza corpos infantis, erotiza a colegial de saias curtas e pregueadas, incentiva a fantasia com as novinhas. O próprio comunicador expõe a facilidade de abrir uma conta no Instagram e de entrar na bolha dos que recebem conteúdo sexualizado, bem debaixo dos nossos narizes, a alguns cliques. Aí, a primeira pergunta incômoda: por que não aprovar a regulamentação das plataformas digitais, projeto que tramita na Câmara dos Deputados desde 2020? Se a preocupação do país é proteger a infância, como bradam os políticos, então, por que não proteger esse público da ação de criminosos sexuais adultos?
Material expondo corpos de menores movimenta fortunas nas redes de pedofilia ao redor do mundo. Tudo isso nós já sabemos e não é de hoje. Claro, ficamos incomodados quando vimos as imagens produzidas pelo influenciador Hytalo Santos, que mantinha crianças e adolescentes socialmente vulneráveis em sua própria casa, em uma espécie de reality show, e os expunha a ambientes com álcool e sexo para divulgar as imagens na internet. Mas qual é mesmo o choque? O país tem dados aterradores sobre exploração sexual, as denúncias, nos últimos quatro anos, cresceram 195%, de acordo com o Ministério dos Direitos Humanos, o que nos coloca na vergonhosa quinta posição mundial. Além disso, 57 meninas entre 10 e 14 anos dão à luz por dia no Brasil.
Como feminista e estudiosa das relações de gênero, me incomodou muito a reação de autoridades, tanto da esquerda quanto da direita, que tergiversaram sobre o tema ao dizer que é preciso ter mais rigor nas punições aos abusadores. Todos concordamos com isso, mas, gente, é possível mesmo punir todos os homens que assediam crianças e adolescentes? Vamos voltar aos números acima, haveria cadeias suficientes para enjaular tanta gente pervertida, considerando que já temos a 3ª maior população carcerária do mundo? Temos as melhores leis de proteção à criança e ao adolescente, então, porque esse público ainda é tão vulnerável? O debate é mais profundo e precisa ser olhado com seriedade, coisa que não acontece por aqui porque é atravessado por um falso moralismo, sem mencionar que é assunto sensível para os políticos que precisam agradar pastores e seus rebanhos para se eleger.
E por precisarem agradar, não assumem pautas impopulares, como, por exemplo, a legalização do aborto, ou a garantia de direitos das mães que querem levar adiante a gravidez, como a redução da jornada de trabalho, a oferta de creches e educação em tempo integral. Enquanto a saída para esse cenário trágico for discutida em nível individual, e não social, os números continuarão a crescer, como acabamos de ver. Ou seja, a hipocrisia de transferir para o indivíduo a desgraça social nunca resolverá o problema e ainda eximirá os políticos desse papel que é deles, é para isso que são pagos. O que quero dizer com isso? Quero dizer que a violência de gênero e os crimes sexuais estão na estrutura cultural da nossa sociedade desde o Brasil colônia.
Uma cultura permissiva que alimenta a ideia de que os homens têm posse sobre os corpos para o seu prazer. Uma cultura que faz vistas grossas a marmanjos elogiando corpos de meninas de nove, dez, doze anos, como se isso fosse uma conduta aceitável. E esse comportamento não se resolve com mais cadeias ou com mais punição, se resolve com políticas de prevenção, que incluem, inevitavelmente, a educação e melhores condições para as famílias acompanharem suas crianças e adolescentes, muito embora 70% dos casos de estupro acorram dentro das residências. Como se pode ver, o nó da questão é muito mais complexo do que parece e qualquer um que o simplifique, não pode ser levado a sério.
No Brasil, o tema da educação em gênero nas escolas vem sendo sequestrado pela extrema direita, que entende que falar de gênero com as crianças seria incentivá-las a serem homossexuais ou transexuais. Seria um tema que iria contra os valores da família tradicional (qual família, pergunto-me, e quais valores?). Mas a quem interessa não educar nossas crianças para as relações de gênero? Quem ganha com esse silenciamento e essa desinformação? Esta é a pergunta incômoda que temos que nos fazer, além de admitir, de uma vez por todas, que somos incompetentes e hipócritas, como país, para proteger nossas crianças e nossos adolescentes.

Mariléia Sell, é jornalista e escritora































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