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Narrando os 200 anos da Imigração: 11º Capítulo - Escravidão na colônia alemã - 1ª parte


O estudo sobre a escravidão entre os imigrantes alemães no Sul do Brasil sempre esbarrou em alguns problemas, dentre os quais destacamos dois. Primeiro, a ênfase dada pelos estudos sobre imigração para o papel de substituição da mão-de-obra escrava que fora reservada a estes estrangeiros pelas autoridades imperiais. Este enfoque desenvolveu-se preferencialmente nos trabalhos que se detiveram no estudo da imigração para a região cafeicultora, que se intensifica no final do século XIX, momento de desagregação do sistema escravista. Segundo, a historiografia produzida pelos ideólogos da identidade étnica destes imigrantes teutos no Sul do Brasil. Trabalhos que fazem questão de afirmar que os imigrantes/colonos não tinham escravos, que abominavam a escravidão pois estariam imbuídos de uma cultura germânica que valorizaria o trabalho livre.


Como exemplo, dentro deste quadro, um historiador recentemente afirmou que:

“As relações entre os colonos e os negros não tinham as conotações da relação entre portugueses e eles. Os negros chegaram a ter relações de emprego com os colonos, mas sem nenhuma conotação escravista, embora a relação fosse escalonada: branco é branco e preto pé preto.”

No primeiro caso contrapunha-se a mão-de-obra livre do imigrante e a escrava, buscando-se apreender a estruturação do trabalho assalariado e do próprio capitalismo no Brasil, mas esquecendo-se que a colonização no Sul do Brasil visava preferencialmente outros objetivos e mereceria, portanto, outro tratamento. No segundo, se reafirma que os imigrantes/colonos não adotaram esta ‘bárbara prática luso-brasileira’, num juízo que a historiografia adotou de modo acrítico como evidência.


No estudo desta historiografia se destaca a análise de Zubaran , que comenta sobre a existência de duas abordagens básicas. Primeiro, os que dizem que os teuto-brasileiros não tinham escravos, por serem pequenos proprietários de uma agricultura policultora desenvolviam uma economia familiar e prescindiam da mão-de-obra escrava; ou devido aos teutos possuírem uma mentalidade moralizadora que regeneraria a idéia de trabalho desmoralizada por uma mentalidade lusa colonialista e escravista; ou, também, porque as leis provinciais e imperiais impediram que os teuto-riograndenses possuíssem escravos. Em segundo lugar destacam que os teutos e seus descendentes foram bons senhores, sem infligir-lhes maus tratos .


A colonização com imigrantes alemães não tem relação direta e imediata com a pressão inglesa pelo fim da escravidão no Brasil, mas sim, sinteticamente, com os objetivos militares de ocupação, defesa e retaguarda no avanço rumo as margens do Rio da Prata defendidos pela metrópole portuguesa e pelo jovem império brasileiro no início do século XIX5 . Assim como remete-nos à política de contratação de mercenários na Europa Central implementada pelo jovem imperador que buscava garantir uma força militar independente das oligarquias regionais. Desta forma, o império, nascido em 1822, já receberia os primeiros imigrantes e mercenários em 1824. Aqueles são destinado à colonização do Sul como área litigiosa do império, espaço de fronteiras abertas, que necessitava de homens e de víveres, além de ser uma região dominada por senhores militarizados que não detinham total confiança do imperador. Os imigrantes foram localizados numa antiga fazenda real que ficava cerca de 30 quilômetros da capital provincial (Porto Alegre), a qual se ligava pelo rio dos Sinos, o que possibilitava o abastecimento e auxílio na defesa daquela cidade, e, para o colonos, a venda dos excedentes agrícolas e artesanais. Vale destacar que esta fazenda era localizada em uma zona com vales profundos, banhados e matas, o que evitava um choque direto entre o projeto de colonização e os interesses da oligarquia pecuarista local, que priorizava os campos da parte sul da província.


Neste sentido, podemos ainda encontrar uma gama bastante vasta de estudos que abordam os objetivos que levaram o governo imperial a implementar a política de imigração, dos quais já apontamos alguns, como a colonização de áreas pouco povoadas em regiões de interesses militar, o desenvolvimento de uma agricultura e de um artesanato que abastecesse centros urbanos, o branqueamento da população, a implementação de um grupo social que dependesse diretamente do governo central, contrabalançando o poder das oligarquias locais, dentre outras6 . Mas, como destaca Abdelmalek Sayad em seus estudos sobre os argelinos na França, “exportam-se ou importam-se exclusivamente trabalhadores, mas nunca cidadãos, atuais ou futuros”7 , ainda mais num país que recém iniciava sua estruturação política baseada num liberalismo híbrido fundamentado na escravidão e na força como condição para a manutenção e ampliação das posses fundiárias e do poder político. Acredito que este deva ser o ponto central para a análise da política de imigração. Mas devemos deixar claro a distância entre os objetivos – importação de trabalhadores (agricultores e artesãos) ou de soldados -, e a dinâmica da imigração e colonização, onde os aqueles “trabalhadores/soldados” extrapolam seu “papel” e passam a se apresentar como força constituinte da sociedade brasileira. Deste modo, passados dez anos do início da colonização no Rio Grande do Sul aprovou-se uma lei que permitiria a naturalização, mas cujos custos e trâmites estabeleciam limites evidentes, sendo mínima sua repercussão local, sendo que não podemos esquecer que logo a região seria convulsionada pela Farroupilha. Igualmente deste período data a primeira regulamentação de contratos de trabalhos que não distanciava socialmente os trabalhadores livres da tradição escravista, na garantia de igualdade das duas partes contratantes.


Por outro lado, é ponto pacífico que a presença negra e da escravidão são marcas fundamentais da dinâmica histórica do Sul do Brasil desde o início da ocupação do território, e que intensificou-se a partir do curto período de desenvolvimento da agricultura açoriana. Mas foi com o desenvolvimento das charqueadas, marcadamente após os anos 20 do século passado, que se instalou no Brasil meridional um pólo de produção fundado no trabalho escravo. Por sua vez, o charque promoveu a formação de fortunas e a prosperidade de algumas cidades, o que incrementou a escravidão urbana, tanto para trabalhos domésticos como artesanais e “serviços”. Assim, o Rio Grande se transforma, em meados do século XIX, num dos principais pólos do comércio negreiro do Império Brasileiro.


Por muito tempo a historiografia tentou mascarar e ignorar a presença e a participação negra na sociedade gaúcha ou mesmo suavizar as brutalidades do sistema escravista nos pagos sulistas. A partir dos anos 60 estas questões foram retomadas, primeiramente em estudos de cunho sociológico, em que se destaca a obra de Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, que discute a conformação de um sistema econômico escravista na região. Nos anos 70, e principalmente nos 80, desenvolveram-se trabalhos sobre as práticas administrativas e políticas em relação à escravidão, como os de Spencer Leitmann e Margaret Bakos, destacando-se as pesquisas de Mário Maestri que enfocam, entre outros aspectos, a resistência negra à opressão escravista. Atualmente, dissertações e teses apontam para novas temáticas como a sociabilidade, a organização social, a multifacetada inserção do negro na sociedade rio-grandense, valorizando, enfim, tanto o negro livre como o negro escravo como agentes participativos da história da sociedade brasileira .


Particularmente sobre a escravidão na região de colonização alemã existe ainda um vácuo na literatura, com exceção de com alguns estudos de Piccolo e Zubaran. Assim, vamos ao nosso caso.


Na segunda metade dos anos 20 do século XIX foram localizados na Colônia Alemã de São Leopoldo aproximadamente 5.000 imigrantes. O cumprimento dos contratos de imigração foi extremamente irregular. Como exemplo, houve demora na demarcação dos lotes, que mal divididos gerariam uma série de disputas por limites entre os colonos e entre estes e os proprietários vizinhos; o pagamento dos subsídios dependia de uma acirrada disputa pelos poucos recursos do Estado, sendo incerto e inconstante; a prometida liberdade religiosa e a naturalização foram recusadas como inconstitucionais (o que, inevitavelmente, nos remete à tese de Sayad, citada acima).


Neste processo, no início dos anos 30, meses antes da abdicação do Imperador e por pressão da oposição, ocorreu o rompimento unilateral dos contratos de imigração, num momento que a Colônia passava a exercer um papel mais destacado no abastecimento da capital e acabara de receber os ex-mercenários das forças imperial estrangeiras dissolvidas por pressão política, potencializando a capacidade de revolta daqueles colonos, que passam a participar mais ativamente do debate político regional. Neste sentido, o não pagamento dos subsídios foi mais um elemento de mobilização dos colonos, onde, certamente, os comerciantes que se especializaram em realizar os contatos e as trocas entre os colonos e a cidade de Porto Alegre e os demitidos do serviço militar assumiram posição de liderança, uma vez que foram os principais prejudicados. Os primeiros porque financiavam os colonos em função dos atrasos no pagamento dos subsídios (dívida que passa a ser totalmente desconhecida), e os segundos porque, como foram para a Colônia depois de 1829, não tiveram suas terras demarcadas e não receberam os subsídios devidos.


Por sua vez, a dinamização das relações econômicas e políticas da Colônia com o resto da província não resultou no reconhecimento da cidadania dos imigrantes, ao contrário, os espaços políticos que se abriram com sua elevação à condição de capela Curada16 (1831) foram rapidamente monopolizados pelos setores luso-brasileiros da região, que passam a se postular, simultaneamente, como tutores dos imigrantes e denunciadores de suas insubordinações e privilegiamento. Monta-se uma situação que só evidencia as dificuldades do sistema político imperial de absorver esta população livre e pobre, buscando soluções que logo demonstrariam sua incapacidade e impossibilidade dentro de uma situação social sui generis para o império brasileiro, em que aqueles imigrantes, além de homens livres, pobres, estrangeiros, apresentaram ampla capacidade de organização social que respondia a demandas culturais, econômicas e políticas e lhes possibilitava fazer frente, inserir-se e ocupar espaços na estrutura social e política brasileira. E, nesta disputa por espaço político e social, o governo e a elite nacional local afirmam insistentemente o caráter estrangeiro dos colonos e de suas organizações. A diferença é constantemente reificada, o que, por sua vez, se transforma num dos fundamentos para o caráter étnico da organização social dos colonos, da construção e reafirmação do mito da origem comum, com tradições, língua e religiosidade partilhadas e contrapostas às dos “brasileiros”. Pretendemos demonstrar que a reafirmação das diferenças manifesta dificuldades do governo de delimitar e definir o espaço social e político deste grupo social, daí os debates sobre seus direitos à terra, subsídios e, mesmo, à posse de escravos, assim como manifesta a dificuldade dos grupos dominantes locais de controlar os colonos através dos tradicionais sistemas locais de mando.


Pesquisa Bado Jacoby/Fonte: Professor Marcos Justo Tramontini(UNISINOS, Brasil)


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