2ª Parte
E prossegue: “Nosso médico é Deus, os remédios a oração, missa, bênçãos, os anjos cuidam de nós, Maria é mãe. Estou melhor aqui que na Europa. Não sinto muito o calor, mais o frio. Estamos em correspondência com P. Sato, os Nossos daqui do Rio Grande do Sul. (...) Esperamos trabalhar um dia entre os índios. Há pouco encontramos famílias de língua francesa, vindas de Friburgo, Suíça, que conhecem alguns jesuítas de lá”. No início de 1860 o Pe. Miguel Kellner escreve ao Pe. Geral, destacando a divisão entre católicos e protestantes, além de descrever importantes aspectos sobre a atuação dos religiosos católicos na Picada dos Portugueses (atual São José do Hortêncio):
“Nossa vida é semelhante à de qualquer pároco da Boêmia ou Baviera. Nossas atividades são em parte materiais e em parte de ministérios. Horário: 04h30, levantar, meditação; 06h00 a primeira missa; 06h45 a segunda missa; café; reza do breviário. Às 08h00, inspeção da casa para ver se tudo está bem, ver a situação na cozinha, gado, horta, roça, se as formigas devem ser mortas com água fervente. Às 11h45, exame de consciência. Às 12h00, almoço, visita ao Santíssimo, recreio, descanso, reza das vésperas; às 18h00, pôr o gado para dentro, ladainhas, ceia; às 20h30, preparar os pontos da meditação, exame; às 21h00, deitar. Durante o dia, o empregado Nicolau e o guri que estão conosco devem ser orientados. O superior está muito doente, fala com frequência de sua doença. Cuida também como melhorar nossas colheitas. Quanto ao nosso progresso espiritual, vale o mesmo escrito no ano passado. Não pode vir para cá quem é doente, inconstante, de índole triste, mal-humorado, rancoroso, quem não vence a língua, os interessados em dinheiro. O Pe. João Sedlak tem cuidados pela casa à semelhança dos de uma mãe de família”.
Pe. Kellner também destaca a trajetória do Pe. Bonifácio Klüber, “que pregou missões nas picadas, colhendo bons frutos. Sua maior obra: cristianizou São Leopoldo, capital de todas as colônias alemãs, onde antes reinavam todos os vícios e um ódio mortal contra os nossos padres da Companhia de Jesus, um cenário que persistiu por durante dez anos, com perigo de apostasia para os católicos”. Padre Sedlak termina a carta com a seguinte descrição:
“Quem quiser vir ao Brasil para o nosso mato não pode ficar sempre sentado em casa. (...) Não podemos receber nada do governo daqui, por sermos estrangeiros, mas Deus não nos abandona. Antes de três anos, eu não tinha nada, agora tenho cinco contos de réis. O presidente da Província não é contra nós. Apareceu nos jornais que, por ordem dele, o jornal alemão não nos pode agredir”.
Da mesma forma, Padre Lipinski envia uma missiva aos seus Superiores na Espanha, descrevendo São Leopoldo e suas picadas, relatando o que está percebendo, depois de dois anos após sua chegada ao sul do Brasil.
“Missão no Brasil “
Carta do Reverendo Padre Lipinski missionário da Ordem de Jesus na Província Rio Grande ao excelentíssimo P. Providencial da Espanha “São Leopoldo, 4 de março 1851 “Meu excelentíssimo Padre! “Chegou a hora de enviar-lhe um relato sobre nosso trabalho e ao mesmo tempo dar-lhe uma visão sobre as diversas colônias onde nossa missão se desenvolve. As colônias denominadas pelos portugueses de picadas, são formadas por alemães que devido a fome abandonaram sua terra natal. O governo brasileiro doou extensas terras e devido a persistência dos imigrantes eles conseguiram transformar a mata virgem em férteis plantações e já se diz que as colônias são o celeiro da Província do Rio Grande. A primeira colônia, São Leopoldo situa-se na entrada de uma grande mata e o Rio do Sinos que flui para Porto Alegre e pelo qual se transporta os mantimentos. Os poucos católicos tem um galpão que serve como igreja e um padre brasileiro atende esta pequena comunidade, um amplo terreno plano separa esta missão de um outro núcleo de maioria formada por luteranos. Os católicos que lá residem ergueram com as próprias condições, no ano passado, uma bela capela de Maria Imaculada. Não muito longe dali encontra-se a Schwabenschneiss que está escondida na mata e tem cerca de 30 famílias que vieram de Hannover, são não católicos que até agora não conseguiram sustentar um padre alemão por própria conta. De Schwabenschneiss chega-se a outro núcleo denominado dos Dois Irmãos, em português e em alemão Baumschneiss, está situada num altiplano onde se encontram muitas plantas medicinais. No interior da mata há cobras, macacos, tigres, cachorros selvagens, leões e outros animais selvagens. Acredita-se que esta região foi habitada por índios, pois encontram-se vasilhames de barro com freqüência pelos colonos, mas nenhum túmulo foi encontrado. O Rio Cadeia forma em meio a uma densa mata uma das maiores cascatas dessa região. São 7 horas de caminhada até a próxima colônia, os caminhos são horríveis, tem penhascos íngremes com riachos que na época das chuvas tornam-se torrentes caudalosas (Buraco do Diabo). Muitos católicos e protestantes moram juntos, eles possuem uma igreja de pedra cujo patrono é São Miguel. Mais 5 horas de caminhada encontra-se uma Capela de São Xavier construída pelos alemães que apesar da pobreza conseguiram erguê-la. Não muito longe avista-se Bom Jardim onde residem pessoas de diferentes credos. Picada Café igualmente tem uma capela de madeira e São José (do Hortênsio) tem maioria católica e uma igreja de madeira, parece que ela vai desmoronar.
“Só um pequeno número de colonos cria gado, a maioria dedica-se a plantações. Eu não posso precisar quantos católicos existem na região, mas pelo que tenho observado até aqui, devem ser mais de 4000. Exceto os recém chegados durante vinte anos, nenhuma pessoa deixou de se confessar por falta de padre. Os casamentos mistos e a escassez de padres trouxe indiferença principalmente na geração jovem que em dias de folga vão nos bares e caçar. Recém os padres espanhóis chegaram a este região e se organizaram para dar atendimento as famílias portuguesas, o P. Johann Coris e P. Joseph Sató assumiram esta função e a primeira missão foi instalada em São Leopoldo e o chefe da colônia mesmo sendo evangélico assistia todas missas. É um comovente quadro quando se vê as crianças chegando aos pares rumo a igreja com uma bandeira na ponta. Antes porém pediram aos seus pais que os lembrassem de seus pecados para confessá-los. Nossos padres pregaram depois em Dois Irmãos, Bom Jardim e Sankt Joseph onde converteram 3 hereges e colocaram cruzes em todas as localidades para que o povo se reunisse para orar durante a quaresma.
“Estes dois missionários ao retornarem para casa desta expedição fizeram um triste relato sobre a prática religiosa nesta região e P. Mariano Berdugo, superior da missão brasileira decidiu enviar padres alemães para cá, assim eu fui escolhido no ano de 1849 para desempenhar esta função juntamente com o P. Sedlak e um Irmão coadjuvante. Embarcamos na Antuérpia em fevereiro do mesmo ano e graças a proteção divina escapamos de uma tormenta no mar do norte onde vinte navios afundaram ante nossos olhos. A colônia de Dois Irmãos, que necessitava muito de atendimento foi a primeira a ser atendida. Quando chegamos ocorria a eleição de um novo magistrado em que dois partidos rivais pareciam deflagrar numa revolução.
Felizmente através de um acontecimento inesperado tudo se acomodou. Os inimigos de fé se direcionaram contra nós, quando se deram conta de que alguns protestantes se tornaram católicos. Eles se encheram de tanta raiva que nos ameaçaram de morte. Alguns católicos que temiam por nossas vidas, acompanharam-nos em nossas caminhadas e outros nos ofereceram armas para que conseguíssemos nos defender, num ataque noturno. Até aqui tudo isso não passou de gritaria e ameaça ante nossa porta. Apesar destes empecilhos na boa intenção de propagar a obra de Deus os frutos crescem de dia para dia. (...)” (Padre Inácio Spohr. História das Casas. Um resgate histórico dos jesuítas no Sul do Brasil, 2021).
Fonte: Histórias de São Leopoldo: dos povos originários às emancipações, de Felipe Kuhn Braun e Sandro Blume/ Pesquisa Bado Jacoby
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