Misofonia - Por Magali Schmitt
- Andressa Brunner Michels - Jornalista - MTB 19281/RS

- há 3 horas
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Parece nome de espetáculo musical. Ou de uma ópera moderna, dessas cheias de ruídos experimentais e plateia dividida. Mas é exatamente o contrário. Ao pé da letra, misofonia significa ódio ao som. Trata-se de um transtorno em que sons específicos — e geralmente repetitivos — provocam reações emocionais negativas e intensas. Irritação, angústia, desconforto físico. Às vezes uma vontade súbita de fugir do próprio corpo.
Por que estou falando disso? Porque, nesse exercício meio torto de autodiagnóstico que a gente faz sem prontuário nem jaleco, penso que sofro de misofonia. Não sempre. Não o tempo todo. Mas em certos momentos, quando a conjunção de sons se sobrepõe — o mundo resolvendo tocar tudo ao mesmo tempo — algo em mim se fecha. Nada que chegue às raias do ódio, porque me resguardo desse sentimento. Mas o incômodo existe, lateja, insiste.
Penso que seja a idade. Aos vinte a gente dorme em qualquer lugar, em qualquer horário, em pé, escorado, com a Banda do Saldanha tocando ao fundo. O corpo ainda não aprendeu a negociar com o mundo. Aos cinquenta, o cenário muda bastante. Às cinco da manhã já estamos atentos ao colóquio despretensioso dos sabiás, como se fosse reunião marcada. O som do vizinho cortando a grama já não passa mais incólume — atravessa paredes, atravessa nervos.
Lá em casa apareceu um bacurau-da-telha. No início, era a coisa mais linda observar a ave, um tipo meio raro no Rio Grande do Sul. Talvez seja meu conhecimento a respeito que seja raro, admito. Mas pensem comigo: o danadinho dorme o dia todo — na telha, por óbvio; o hábito lhe rendeu o nome — e passa a noite em assobios. Um apito alto, insistente, que arranca a paz dos desavisados que acordam ao menor sussurro. Soa quase antiecológico dizer isso, mas nessa hora meu amor pelas aves se esvai. Porque se há algo que faz falta neste momento da vida é sono. Sono de qualidade, sono inteiro, sono que não venha picotado por trinados.
No fundo, não é o bacurau-da-telha (coisa chique esse nome cheio de hífen). Sou eu. Sou eu e o tempo. Sou eu e a pressa. Sou eu e esse cansaço civilizatório difuso de quem vive com a sensação de que está sempre devendo alguma coisa ao relógio. O final do mundo anunciado que assombra as noites e me faz rolar na cama, em vigília involuntária. Sempre à espera: do dia 5, do dia em que vira a fatura do cartão, da sexta-feira, das férias, da promoção, da resposta que não vem.
Talvez a misofonia seja isso também: o corpo reclamando do excesso. Não apenas de sons, mas de urgências. Um ruído interno que se soma ao externo. Aquele detalhe minúsculo — feito unha encravada — que não impede a caminhada, mas transforma cada passo num pequeno lembrete de desconforto. E, no silêncio raro entre um apito e outro, fica claro: não é o barulho que dói. É a pressa. É o tempo chutando a porta e entrando sem pedir licença.

Magali Schmitt, é escritora e jornalista































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