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O fenômeno da fragilidade seletiva - Por Nana Vier

Dizem que a mulher moderna faz tudo: monta móvel sozinha, carrega sacola como se tivesse oito braços, troca lâmpada no escuro, revisa as contas do mês, organiza mentalmente três listas ao mesmo tempo e ainda acolhe a amiga chorando no WhatsApp como se fosse uma central emocional 24 horas. Sozinha, ela administra caos, ajusta o Wi-Fi, abre garrafa de vinho, resolve pepino de trabalho, lembra dos aniversários de todos e ainda encontra espaço para existir. Somos um misto de engenheira, terapeuta, bombeira e gerenciadora de crise.


Mas basta o homem dela chegar, aquele com energia masculina bem encaixada, voz firme, presença tranquila e jeito de quem sabe onde está indo, para um fenômeno curiosíssimo acontecer. A força some, a atenção relaxa e, de repente, ela já não abre nem a tampinha da garrafa de água. Eu mesma, que sozinha atravesso avenida como uma ninja urbana, ao lado do meu marido esqueço completamente de olhar para os dois lados. Caminho como quem confia que o universo ajustará o semáforo especialmente para mim. E o pior: confio mesmo.


A neurociência explica parte disso. Quando estamos com alguém que nos transmite segurança genuína, o cérebro aciona um pacote biológico antiestresse: baixa cortisol, sobe ocitocina, desacelera o estado de alerta. A amígdala, aquele soldadinho interno sempre desconfiado, entrega o crachá e tira um descanso. E o corpo entende: “aqui eu posso diminuir a vigilância”. Não se trata de regressão, mas de confiança profunda. Sozinhas, somos estrategistas. Com eles, podemos ser humanas.


E no dia a dia essa coreografia fica cômica e comovente. Ele abre potes, segura a porta, confere o gás, leva o lixo pra fora, dirige na estrada porque sabe que eu detesto ultrapassagem, alcança a prateleira alta, carrega a sacola pesada, mantém a piscina impecável sem eu pedir, percebe quando estou cansada. E eu? Eu fico macia. Entrego as micromissões. Relaxo. Até meu olhar muda de textura, como quem voltou para casa por dentro.


A independência continua existindo, claro. Não deixamos de ser capazes. Apenas deixamos de atuar em alerta permanente. A psicologia chama de co-regulação: quando a presença do outro organiza o nosso sistema nervoso. Eu chamo de “poder desligar o modo combatente para ativar o modo princesa”.


E sim, ainda abrimos garrafas, enfrentamos filas, resolvemos burocracia, lideramos projetos, tomamos decisões difíceis. Mas quando estamos ao lado  da pessoa certa, a alma encontra um colo invisível para pousar. A vida ganha bordas mais macias. E confiar em alguém não diminui nossa força. Pelo contrário: multiplica.


E isso não tem nada a ver com fragilidade real. Tem a ver com permitir-se existir sem armadura. Porque viver em estado de alerta consome energia demais, envelhece a alma e tira o brilho das pequenas coisas. Quando dividimos a vida com alguém que sabe sustentar o próprio peso e ainda emprestar o ombro quando o nosso falha, o mundo inteiro fica mais respirável. Talvez seja por isso que, ao lado dele, fico distraída, leve, quase poética. Porque ele me devolve o direito de relaxar. De ser suave. De ser um pouco menos guerreira e um pouco mais paparicada.


No fim das contas, a fragilidade seletiva é só um sinal de que o corpo reconhece repouso. E repouso, hoje em dia, é praticamente artigo de luxo emocional. Ter quem ofereça isso é um privilégio raro, bonito e profundamente humano.


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Nana Vier, é professora e escritora

 

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