A sala dos espelhos - Por Magali Schmitt
- Andressa Brunner Michels - Jornalista - MTB 19281/RS

- há 6 horas
- 2 min de leitura
Encontrei um colega de trabalho na rua. O Hélio. Ele não me viu e nem sei se me reconheceria se visse. Eu que sou boa fisionomista. Reconheço pessoas que não vejo há séculos e outras que só vi uma única vez. A última ocasião em que nos vimos, o Hélio e eu, deve triscar na casa das três décadas.
Fiquei feliz em vê-lo.
Num momento qualquer dessa caminhada, lembrei dele como lembrança que a gente não explica. Igual àquelas propagandas antigas guardadas nos porões da memória que, do nada, surgem inteiras. A gente se pega recitando, ipsis litteris, como se tivesse aprendido ontem.
São trilhões de dados armazenados lá num cantinho, sem serventia aparente, roubando espaço das informações genuínas — aquelas que nos custam vergonha e perrengue para lembrar. Vocês sabem.
Aconteceu comigo recentemente. Eu dirigia quando começou a tocar The Hall of Mirrors, no rádio, do grupo alemão Kraftwerk. Na primeira nota, fui catapultada para os anos oitenta e para a propaganda da Starsax — que, à época, eu não fazia a mínima ideia de que ficava aqui na vizinhança. Pela produção, pela música e pelos meus pouco mais de dez anos de certidão de nascimento, eu jurava que era um calçado importado, vindo da gringa.
Meu filho estava ao meu lado no carro e eu comentei:— A música da propaganda da Starsax. “O calçado da geração jeans”.
O mais maluco é que, na sequência, o locutor confirmou: música da trilha da icônica propaganda da Starsax, o calçado da geração jeans.
Percebi, então, que sofremos todos das mesmas dores. O que sobra num lado, falta no outro quando o assunto é memória — esse item escasso que funciona como cobertor curto nos dias frios.
E ainda me peguei refletindo sobre a coincidência do nome da música: A sala dos espelhos. Porque a vida é essa efervescência refletida. Uma dança em que os bailarinos se encontram e se desencontram enquanto seus reflexos vêm e vão ao sabor da música.
Tem gente que some e nunca mais volta. Tem gente que está sempre ali. Outros são importantes demais por um tempo e depois evaporam como orvalho ao primeiro sol. Há aqueles de quem queremos distância, mas insistem em permanecer. Os que são engolidos pelo destino e desaparecem sem que a gente queira — e os que deixam o salão por vontade própria.
E a música nunca para. A festa segue, atravessa o espaço, rasga o tempo. Trocam os músicos, os pares, os convivas. As cores mudam — do rosa e verde para o vermelho e laranja; do amarelo queimado com marrom para o cinza e o azul claro. O clima alterna, se revolta, se ressente.
Por isso, fiquei feliz em rever o Hélio, mesmo que ele nem saiba. Significa que estamos vivos, trinta anos depois.
Não éramos próximos. Apenas dividíamos a bancada de trabalho em um banco — o emprego dos sonhos para as moças da minha idade. Sonhos acanhados que evoluíram, se tornaram imensos, rodopiaram diante do espelho e ainda valsam. Como nos tímidos anos oitenta, quando eu achava que a Starsax ficava na gringa.

Magali Schmitt, escritora e jornalista































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