O último andar - Por Magali Schmitt
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- 10 de nov.
- 2 min de leitura
Daqui da janela do prédio, vejo os carros passando lá embaixo, na rodovia. Imagino o chiado dos pneus no asfalto enquanto observo as densas nuvens se desmanchando em pingos finos e insistentes sobre a cidade. Ciclone extratropical, previram os meteorologistas. Um pensamento atravessa minha mente e, num segundo, estou de volta à infância, lendo um livro didático que me fascinava.
“O último andar é mais bonito: do último andar se vê o mar. É lá que eu quero morar.”
Foi para o último andar que me transportei neste instante em que o dia e o céu se confundem, formando uma única tela cinza. Daqui, desse ponto alto, percebo que essa memória dança na minha cabeça há pelo menos quatro décadas e meia, desde os tempos amarelados e mornos dos anos 1970, quando eu sequer havia entrado em um prédio e, muito provavelmente, ainda não conhecia o mar.
“O último andar é muito longe: custa-se muito a chegar. Mas é lá que eu quero morar.”
Tudo indica que levei muito a sério os versos de Cecília Meireles, embora somente agora, buscando o texto na web, tenha descoberto que são dela e somente agora, também, consiga entender sua profundidade. Afinal, o que poderia uma criança, do alto de seus seis ou sete anos de existência, depreender de uma leitura assim? Fica o lembrete aos que escolhem livros didáticos: nem sempre lemos o que podemos compreender.
E isso me faz lembrar a frase “todo tempo é um”, que a minha mãe costumava repetir. Levei anos para entender seu o real significado. Hoje, ela me parece tão simples e tão precisa. Toda pessoa tem seu tempo e cada tempo é um espelho diferente de quem somos.
Naquela época, eu não tinha condições de entender Cecília Meireles. Mas texto bom é bom em qualquer momento, e cá estou, cinquenta anos depois, lembrando do último andar. O fascínio retorna inteiro, enquanto meus olhos sorvem a paisagem pré-ciclone.
“De lá se avista o mundo inteiro: tudo parece perto, no ar. É lá que eu quero morar.”
É disso que falo: do último andar que todos buscamos. Esse lugar simbólico que nos completa, acalma a alma e pacifica os demônios. Seja num prédio, numa casa pequena, num canto de montanha ou no coração de alguém, o último andar é onde a vida parece mais ampla. De onde a gente observa, cresce e entende.
O último andar é um caminho que vale a pena ser percorrido. É difícil, distante, às vezes se esconde de nós, mas vale cada degrau. Dá para morar em andares mais baixos? Dá. Mas é muito mais emocionante aqui de cima, onde o ar é leve e “quando faz lua, no terraço, fica todo o luar.”
Talvez envelhecer seja isso: morar cada vez mais alto — e ainda assim continuar vendo o mar.

Magali Schmitt, é autora e jornalista































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