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Um Cara chamado João - Por Elisabeth Baldwin



Motivada pelas filmagens das últimas cenas do documentário "Dr. Araguaia", realizadas em São Leopoldo, no final de 2023, que pretende revelar a história familiar de João e, também, compelida a registrar, com admiração, o movimento nacional que Sonia Maria Haas vem desenvolvendo há mais de vinte anos para mostrar ao mundo a trajetória heroica de seu irmão, resolvi desafiar a memória e esboçar, sob o meu ponto de vista, quem foi João, enquanto amigo da juventude.


Começo pelos idos de 1954. Nessa época, eu devia ter nove anos de idade e João, uns doze ou treze. Às vezes, preciso recontar os anos para poder narrar os acontecimentos em seus devidos tempos e lugares. Aos quase oitenta anos, os tempos e os lugares vão se apagando, tornam- se fluidos e permutáveis. O que fica, realmente, na memória são os sentimentos ou sensações advindas desses acontecimentos.


Éramos vizinhos de quadra na Marquês do Herval em São Leopoldo. Lembro- me muito bem desse garoto, magrão, religioso, coroinha das missas na Matriz. Ou era na Capela de Santa Teresinha na Lindolfo? Na pequena praia do Curumim, fundada por leopoldenses, no litoral norte do RS, também éramos vizinhos. Morávamos em casas contíguas. Nossos pais compraram os terrenos e construíram as casas na mesma época. As casas teimam em sobreviver ao tempo. Meio datadas, enquanto a praia cresce e se moderniza. Contudo, os setenta anos de histórias de vizinhança permanecem inscritos nas velhas paredes de ambas as casas.


Éramos sete filhos, os Baldwin. E também, sete filhos, os Haas. Eu emparelhava em idade com Elena, amiga de todas as horas nas lidas praianas e colega no Colégio São José. Ela especializou-se nas Matemáticas; eu, nas Letras. Beto e João eram os irmãos mais velhos: Beto mais rueiro e namorador e João mais caseiro e dedicado aos estudos. Os outros, Tânia, os gêmeos (Jorge e Idi) e Soninha trocavam ‘figurinhas’ com meus irmãos mais novos.


Por volta de 1958, João, então adolescente, estudava no Colégio Anchieta em POA, depois de ter cursado o São Luís em São Leopoldo. Esguio , elegante, rosto anguloso e belo, óculos de acetato preto, o tipo comportado que chamava atenção das moçoilas. Foi convidado especial para minha festa de quinze anos na casa da Marquês.


Sempre um exemplo de polidez e respeito, o tipo de homem que qualquer pai queria como genro. Inclusive o meu. Em 1960, aos dezoito anos, João entrou para o curso de Medicina na UFRGS. Passei a vê-lo muito amiudamente em alguns eventos da Sociedade Orpheu. A partir de 1961 nunca mais vi João. Soube que ele havia sido eleito presidente do Centro Acadêmico da Medicina na UFRGS, depois teria se filiado ao PCdoB, uma dissidência do PCB fundada em 1962.


Em 1964, um golpe militar derrubou Jango, então presidente, cassou os direitos políticos de adversários, prendeu estudantes, destituiu professores de suas cátedras nas universidades e instalou uma severa ditadura militar. O PCdoB , embora na clandestinidade, propôs enfrentar a ditadura militar através de uma ação armada, resultante da organização de um exército popular campesino. Mandou alguns de seus líderes para China, para que aprendessem as táticas de guerrilha rural. Na volta , esses líderes bem souberam organizar estratégias de ataque e defesa, conforme depoimento em orgãos da imprensa de ex- combatentes hoje vivos. Elena, irmã de João, contou- me, certa vez, que viu o irmão, pela última vez, em janeiro de 1966.


Ao terminar sua residência médica na Santa Casa e no Ernesto Dornelles em POA, João esteve em São Leopoldo. Comprou malas, falou à irmã que ia viajar para o Rio de Janeiro em busca de trabalho. Em 1967, ao ouvir boatos sobre o PCdoB e uma provável arregimentação de jovens para o movimento, Elena ficou preocupada. Viajou ao Rio, procurou-o em hospitais e vários endereços que conseguiu. Não o encontrou. Num desses endereços, com a porta entreaberta, o morador disse que só conhecia João dos congressos da UNE, e não sabia mais nada sobre ele. Elena voltou a São Leopoldo, muito entristecida, pois João, além de irmão querido, sempre foi seu parceiro de festas, cinema e barzinhos.


Alguns dias mais tarde, recebeu duas cartas de João, uma para si e outra para a mãe, D. Ilma. Elena teve certeza, então, que João estava bem e que soube que ela foi procurá-lo. Na luta, que ficou conhecida como "Guerrilha do Araguaia", não mais de setenta militantes, na maioria estudantes, desconhecendo a extrema dificuldade de arregimentar campesinos e esquecendo a força das botas desses anos de chumbo, tiveram, quase todos, suas vidas ceifadas. Aos 31 anos, João foi morto pelos militares na "Guerrilha do Araguaia", numa emboscada, quando pensava estar indo realizar um atendimento médico de urgência. E até hoje, a família procura seu corpo para um sepultamento cristão.


Todo meu respeito, Joao Carlos Haas Sobrinho!


Eu sei que sempre foste um homem bom!


Elisabeth Baldwin, é Professora Universitária e Dra. em Literatura e Cultura

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